quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Fiat!


"Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."

Clarice Lispector

terça-feira, 28 de agosto de 2012

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Votos de submissão


Caso você queira posso passar seu terno, aquele que você não usa por estar amarrotado.
Costuro as suas meias para o longo inverno…
Use capa de chuva, não quero ter você molhado.
Se de noite fizer aquele tão esperado frio poderei cobrir-lhe com meu corpo inteiro.
E verás como a minha pele de algodão macio, agora quente, será fresca quando for janeiro.
Nos meses de outono eu varro a sua varanda, para deitarmos debaixo de todos os planetas.
O meu cheiro te acolherá com toques de lavanda
- Em mim há outras mulheres e algumas ninfetas -
Depois plantarei para ti margaridas da primavera
e aí no meu corpo somente você e leves vestidos,
para serem tirados pelo seu total desejo de quimera.
- Os meus desejos, irei ver nos seus olhos refletidos.
- Mas quando for a hora de me calar e ir embora
sei que, sofrendo, deixarei você longe de mim.
Não me envergonharia de pedir ao seu amor esmola,
mas não quero que o meu verão resseque o seu jardim.

(Nem vou deixar – mesmo querendo – nenhuma fotografia.
Só o frio, os planetas, as ninfetas e toda a minha poesia.)


Fernanda Young

Sobre o fim das coisas

Durante uma de minhas caminhadas vi um poodle fugir por entre as pernas da dona ao abrir o portão para receber uma vizinha. Ele correu como se nunca tivesse  sentido a luz do sol, o perfume da grama, o vento da rua... feliz, muito feliz. A sra dona do cão corria logo atrás aos gritos de desespero: “Vooooolta Luck!” Observei a cena por uns instantes e não soube de quem tinha mais pena: se era do cão pela ilusão momentânea de “liberdade” ou da dona pela falsa ideia de “propriedade”. Nada nos pertence!
Comprei há alguns anos uma bolsa que me apaixonei a primeira vista. Hoje, voltando para casa, notei o desgaste de suas alças, as manchas de seu interior e me indignei: tinha que durar pra sempre! Não quero outra! Quero esta que me cativou! Pensei nas mudanças que vivemos a contra gosto porque as coisas acabam. Tudo, impreterivelmente. Porém se engana quem pensa que tudo é descartável. Algumas lembranças são tão presentes que muitas vezes se recorrem a especialistas do “descarrego” para liberar espaço para o novo. E ainda assim, nem sempre as novas peças são do mesmo formato do vazio que tentam preencher.
Voltando ao cão fugitivo. Me perguntei o que faria se percebesse algo que tanto me cativou escapar-me por entre os dedos... Me peguei correndo pela rua a encorpar o coro: ”VOLTA LUCK! VOLTA!” Ele voltou correndo e pulou no colo daquela senhora que já estava aos prantos. Sabe ás vezes, o mesmo amor que nos move é também o que nos faz querer ficar...
Amante de Saint Exupery, por muitos anos acreditei na frase da carente raposa ao Pequeno Príncipe: “Tú te tornas eternamente responsável por aquele que cativas.” Bobagem! Aliás, maldade! Porque o amor é gratuito. Daí sua beleza e sua crueldade.

Por fim, com o coração queimando, abri o meu portão.

“O amor jamais passará.”  I Cor 13-8

terça-feira, 3 de julho de 2012

Mais humor, por favor!

Há algumas semanas atrás ouvi uma história fantástica de um professor tão fantástico quanto. Aliás, este me ensinou conceitos de Logística. Conceito que para mim pode ser resumido em uma busca mecânica e incansável de neutralizar temporariamente o caos. Até porque elimina-lo não é nada inteligênte: inibir o caos representa estagnação. Crescer requer riscos!
Mas não era sobre Logística que iria falar-lhes, nem sobre meu mestre que inspirou este texto, mas sim, sua partilha generosa sobre lembranças de sua fase no colégio militar.
Inicialmente destacou-nos o convencional: precisão e disciplina aplicadas desde a formação em ciências exatas até o corte de cabelo. Lá, onde o erro é fatal, assim como na Logística, passou grande parte de sua juventude. Mas, no emaranhado de boas recordações, nos contou um dos episódios em que saíra do alojamento pulando o muro com outros amigos. As 22h00 as luzes se apagavam. Lá fora só muros e sentinelas devidamente armados. Fronteiras que muitas vezes não eram suficientes para contê-los. Naquela noite planejaram uma farra na cidade mais próxima. Como de costume, aguardaram o apagar das luzes, enrolaram travesseiros nas cobertas para simularem que estavam em um tranquilo sono, passaram pelo pátio assoviando para alertar ao sentinelas que estavam saindo. "- Mas e se eles não ouvissem os assovios?"   Rindo me respondeu: "- Nos mandariam bala!"
Passaram a noite fora e voltaram antes de amanhecer. Assoviaram novamente e, depois de um tempo ouviram a resposta do outro lado do muro garantindo a segurança deles: outro assovio. O primeiro do grupo começou a subir e ouviu do outro lado: "- Ei! Tá limpo! Me dá sua mão que eu te puxo!"   Fez isso e voltou com êxito. Um a um atendeu ao chamado da voz que vinha do outro lado. Por fim, chegou a vez do meu professor que, sem saber, também daria a mão a um 'algoz'. Assim que chegou do outro lado ouviu uma voz grave e rouca lhe questionando “- Nome?”   Branco, mais do que já é, olhou para a direção da voz e viu um homem alto, com bigode volumoso e ligeiramente enrolado nas pontas: "- Capitão!"   O oficial tinha um sorriso irônico, até então nunca visto, e após anotar o nome de cada um que fora resgatado no muro dizia: "- Tá preso!"
Todos eles passaram o resto da noite na prisão do quartel e riram até de manhã com o ocorrido. Aliás, riem há 50 anos... Algo que ‘fugiu’ do processo planejado, o que culturalmente subentende-se como erro, resultou em um fragmento de felicidade Kairós (o que não se mede no tempo). E isso só acontece com quem percebe a graça da vida: crescer, amar, viver requer riscos! Se tudo tivesse ‘dado certo’, eles não teriam experimentado a liberdade que o humor dá: deixar a culpa e o rancor do lado de lá do muro!

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Homeopatia

Hoje espetei o dedo em uma farpa de madeira. Sempre que uma delas entrava em meu dedo era meu pai que me salvava. Com sua mão grande e pesada, ele adquiria um cuidado e precisão admiráveis. Uma farpa, quando invade nossa couraça protetora nos provoca dor, mas a única maneira de não deixar que o restante do corpo padeça é cutucando-a para extraí-la o quanto antes. Espreme-se o dedo, belisca com uma pinça, espreme um pouco mais, até que ela se entrega e a retiramos para alívio imediato.
Engraçado que o mesmo ocorre quando a ferida é no coração. O problema é que não existe pinça para isso. Ela fica lá, latejando, inflama o humor, incomoda o sono, arde o olho.
Assim como o corpo se move rapidamente para defender-se do que está causando a dor enquanto o local afetado melindra cuidados, nestes momentos temos a ligeira impressão que o mundo está indiferente, rodando acelerado, enquanto nós estamos fragilizados, impactados, desacordados... Tal qual o conto da Bela adormecida.

Coincidência ou não, estas tais farpas que um dia me atingiram também foram tratadas pelo meu pai. Sua paciência, seu abraço e seu conselho me proporcionaram diversos momentos de alívio. Ele me ensinou que é preciso ter coragem: espremer, remexer, forçar a ferida até que se desprenda aquilo que me feriu. E esta experiência de sabor amargo pode ser passageira... se quisermos. Pelo menos penso que era nisso em que acreditava Carlos Drummond de Andrade quando dizia “A dor é inevitável. O sofrimento é opcional.”
Quando provamos de um remédio do qual o gosto não nos agrada, a primeira reação que temos de é implorar: - Água, por favor! O mesmo acontece com nossa alma: anseia o alívio do choro. Pois, já sabia Antoine de Saint-Exupéry que “a gente corre o risco de chorar um pouco quando se deixou cativar...”
Então, se me permite um conselho: chore. Sem reservas. Deixe o luto ocupar seu devido lugar no tempo para que ele não seja eterno. Até quando dormirá? Seja dono de si e decida por lutar, correr atrás, virar a página antes que conto acabe em meio a uma pilha de livros empoeirados e perceba que o tempo não volta mais.

Por fim, escrevi. Pois, assim como Clarice Lispector: “um amigo me chamou pra cuidar da dor dele, guardei a minha no bolso. E fui.”

Minhas sinceras desculpas
















"Deus de vez em quando me tira a poesia.
Olho para uma pedra e vejo uma pedra"

Adélia Prado

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Faxina

Eu vou tirar você de mim.
Seu gosto da minha imaginação.
Sua voz da minha pulsação.
Eu vou tirar. Juro que vou!

Seu nome dos meus olhos.
Seu rosto do meu ócio.
Seu cheiro do meu suspirar.
Seu humor do meu gargalhar.
Eu vou tirar você de mim.
Suas ideias dos meus planos.
Suas palavras dos meus banhos.
Eu vou tirar. Juro que vou!

Sua ausência da minha saudade.
Sua fé da minha verdade.
Seu desapego do meu ciúme.
Sua opinião do meu perfume.

E quando não restar mais nada,
Por favor, amor, deixe a porta fechada.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Corredeiras

Há alguns dias escrevi este texto sobre o tempo. Queria postá-lo no dia do meu aniversário (último dia 5), mas, como iria viajar no mesmo dia, a correria me impediu. Tive a vantagem de refleti-lo ainda mais em meio a linda paisagem que desfrutei durante o feriado. Mas depois que voltei, veja que ironia: ainda não tive tempo de divulga-lo. Como falar de algo que eu nem tenho!! Além disso, fotografei durante a viagem a imagem que comporia este post: o dono da máquina ainda não teve tempo de me mandar... Chego a me questionar se ele existe de verdade! Só me atento ás horas duas vezes ao dia: quando desperto e imploro que 5min tenha o mesmo efeito de 5 horas, e quando vou deitar, onde sempre me surpreendo. Como passa rápido!
...
Há 20 anos frequento a mesma paróquia. Dia desses a caminho de lá passei pela rua da casa marrom. Quando criança, eu e mais uma cambada apertávamos sua campainha antiga e corríamos feito foguetes. Nela morava uma senhora que, para nossa imaginação, mais parecia uma bruxa. Ela, coitada, sempre atendia já aos gritos e tentava em vão nos alcançar, mas, o peso do tempo lhe fazia desistir na esquina... Até poucos meses atrás ainda ríamos da velha bruxa da casa marrom.
Desta vez a paisagem mudara. Passando pela enésima vez neste caminho, agora já mais grandinha e bem menos corajosa, vi no muro uma placa divulgando uma empresa de demolição e no fundo uma montanha de tijolos. Por alguns segundos não consegui me mover: “o que aconteceu?” O novos imponentes prédios ao redor me respondiam: “o tempo passou.”  Me perdoem a pieguice, mas me emocionei. Parte de minha história se emaranhava naqueles entulhos: as brincadeiras, o primeiro beijo, o caminho para o futebol, para o crisma, para a missa. Tudo no chão, exceto o portão... e sua irresistível campanhia.
Na última viagem que fiz ainda me martelava esta história. Olhando para as corredeiras da cachoeira em que molhava meus pés, expliquei a um amigo onde ficava a nascente. Com muita espontaneidade ele sussurrou: “então é sempre água nova...” Ele, sem saber, me fez entender o tempo. Lutar contra nos faz perder a liberdade de viver. Algumas pessoas se apegam tanto ao que passou que se tornam musgos presos a pessoas, bens, experiências. Vivem de projeções do já se foi. E isto exige delas um enorme esforço: se prender as pedras as impedem de participar de novas paisagens e crescerem!
Todo aniversário de mulher é um dilema: quantas velas vão no bolo? Desculpe. Não tenho vergonha da minha idade, tenho vergonha do que deixei de viver até aqui. Não é o envelhecer que me assusta, mas o medo de não ter vivido o tempo do agora enquanto olhava para trás. Talvez seja esta a grande vantagem da inocência das crianças: o tempo não é um inimigo, é um convite...  Aperta a campainha e corre junto!

domingo, 1 de abril de 2012

Sobremesa

Na minha rotina atual tenho feito, à contra gosto, diversas coisas sozinha. Um desperdício: aprendemos muito uns com os outros!
Na última semana fui almoçar em um novo restaurante e adorei o lugar. Sentia vontade de dizer as pessoas a minha volta “Que delícia! Prova! Mas tem que ser de olhos fechados...” Será que aquelas pessoas percebem a grata experiência de saborear um prato, garfo a garfo? Lembrei de uma das minhas colegas, ao me observar almoçando, dizendo admirada: “É muito engraçado: você come com prazer... Parece que sua comida é sempre mais gostosa que a minha!” Mas existe sentido mais prazeroso e completo que o paladar? Nem tudo que tocamos, ouvimos, enxergamos ou cheiramos passa a fazer parte de nós. O paladar é guloso: toda substância é absorvida, transformada ou descartada, mas nunca ignorada! Os outros quatro sentidos são dependentes, já o paladar tem vida própria. Deve vir daí a necessidade dos apaixonados de se saborearem! O entrelaçar de dedos nunca será tão doce quanto um beijo nos olhos, nem tão temperado quanto uma mordida na orelha...
A propósito, este sentido alquimista também produz frutos: a palavra. Algo tão meu se torna “nosso” quando a porta deste laboratório se abre. Nosso porque, mesmo não querendo, as palavras balançam nossos cílios auditivos. Farão parte de você ainda que inconscientemente. Madre Tereza da Calcutá dizia que “As palavras que não dão luz aumentam a escuridão.” Pensando nisso passei a me atentar aos frutos que eu produzia com minha boca “porque a boca fala daquilo que o coração está cheio.” Luc 6, 45. E “não existe árvore boa que dê frutos ruins, nem árvore ruim que dê frutos bons.”  Luc 6, 43.
Palavras amáveis são como manga madura: tão doce que lambuza! Creio que Willian Shakespeare também sabia disso:  Seja como for o que penses, creio que é melhor dizê-lo com boas palavras.”  Já aquelas secas de sentimento e verdade, imaturas e duras, são como manga verde: melhor seria tê-las deixado no pé porque uma vez arrancada, não se devolve. E ainda há quem goste! Pode?!
Não posso impedir que os outros me ofereçam deste fruto, mas decidi só absorvê-lo com uma generosa colherada de leite condensado.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Magenta

Voltei a desenhar. Não, ainda não tenho um novo desenho pronto para divulgar. Na realidade voltei a desenhar desde que me recordei da alegria de ver traços e cores se misturando. Comprei novos pastéis, pincéis, papéis. Cada folha em branco é um convite! É como mar no verão, bolinha para o cão, festa de pés no chão... Novamente, vida no cavalete!

Quando fui apresentada a um Monet, aos 9 anos na aula de Educação Artística, me lembro como se fosse hoje: não conseguia piscar. A atividade exigia que o reproduzíssemos. Travei. Mas como professora?! Não existem estas cores no estojo! Não há amarelo mais vivo e azul mais delicado! Era lindo demais para meus rabiscos... Mas foi exatamente ele que deu vida ao meu fascínio pelas artes. Segundo Rubem Alves “é fascínio que acorda a inteligência”. Realmente: o que seria de Ludwig van Beethoven, Candido Portinari, Santos Dumont, Fernando Pessoa e muitos outros sem o incontrolável fascínio?! Assim como lindamente exclamou Adélia Prado: “Não quero faca nem queijo. Quero é a fome!”.

Você deve estar se perguntando: "então porque parou?" Também me fiz esta pergunta: Sindrome de Centopéia.
“Conta-se que um dia, um gafanhoto encontrou-se com uma centopéia (...).
- Dona Centopéia, eu tenho pela senhora a maior admiração. Deus Todo-Poderoso me deu apenas seis pernas. Para a senhora ele deu cem. Assombra-me a elegância tranqüila do seu andar. Todas se movem na ordem certa. Jamais vi uma centopéia tropeçar. Mas, por isso mesmo, tenho uma curiosidade: quando a senhora vai começar a andar, qual a perna que a senhora mexe primeiro?
- Obrigado pelos elogios, senhor Gafanhoto – respondeu a Centopéia – Sua pergunta é muito interessante porque eu mesma, até hoje, nunca pensei no assunto. Sempre andei sem pensar. Perdoe minha ignorância. Jamais fui à escola do andar certo. Não fui conscientizada. Andei sempre um andar ignorante. Mas agora vou prestar atenção...
Conta-se que desde esse dia a Centopéia ficou paralítica.” (ALVES, Rubem. 2011)

Hoje, curada da paralisia, percebo que a técnica é ferramenta e não condição para o ‘criar’. E por fim, a frase guardada no meu porta-treco de Guimarães Rosa fez todo o sentido: “O que um dia vou saber, não sabendo, já sabia...”.

Não sei desenhar como Monet, mas certamente esta paixão me dá tudo o que eu preciso...

“Ainda que eu falasse a língua dos homens e a dos anjos, se não tivesse amor, seria como sino ruidoso ou como címbalo estridente. Ainda que tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência; ainda que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse amor, eu nada seria.” I Cor 13, 1-2

quarta-feira, 21 de março de 2012

Em mim e fim

Uma das coisas em que menos acreditava na vida era a chamada “química” que existiria entre as pessoas. Sempre achei este conceito vago. Tinha de haver alguma justificativa lógica e pronunciável para as relações humanas. Simples assim: é explicável, portanto existe. Felizmente, o que a sede de saber me proporcionou nos últimos tempos foi uma reflexão sobre o “não saber”.
Ouvindo um amigo, vaguei pelo conceito de “química”. Lembrei-me que as coisas que mais desejamos, que nos atraem, despertam anseios fisiológicos: um frio na barriga, o suor das mãos, a falta de ar. Nas relações entre homem e mulher, isto é mais aceito, mas não mais entendido. Como podem algumas pessoas nos atrair tanto e de diversas maneiras sem um processo lógico de começo, meio e fim?
Algumas amizades nascem no olhar. Óbvio que se consolidam com o tempo, mas nem todas precisam dele para crescer. Algumas já nascem adultas! E, por ser tão bom senti-las, não se cobra o processo de entendê-las.
O sentir não é dizível. Posso descrever o sabor de um morango, mas seu corpo é que lhe demonstrará o sabor percebido. Isto explica porque alguns olhos famintos são tão tristes: nunca poderão comer como a boca! Para sempre portas de desejo.
Entendo então que o mesmo pode ocorrer com o Amor: já existir em si. Ainda que muitas vezes não saibamos descrevê-lo, sua evolução é visível. Mas seu nascimento não se vê: ele já estava lá, no fundo do olhar! É no processo de saboreá-lo que surgem as palavras. Basta lhe dar um pouco de ar para ele incendiar.
Ar. Me diz: o que sentes quando respira?
...
Só o que consigo sentir é o meu peito ardendo e minha boca cheia d’agua. O saber em mim deu espaço para o respirar: quimicamente mudo.

Fruta mordida

Como sempre, as conversas que tenho durante o dia, ainda que rápidas, remexem meu porta treco. Não consigo evitar: tenho fome de pensar. Confesso o pecado da gula reflexiva. E, assim sendo, assumo o risco iminente de indigestão.
Mais recentemente, em um dos meus “banquetes” fui surpreendida por um alívio estomacal. Falávamos sobre felicidade, sua ausência e sua presença. Prato feito, supostamente, sem novidades ao paladar. Porém as frases “Deus quer que você tire a pedra! (...) Ele nos deu a parte que nos cabe” quiseram mais que me saciar.
Nas minhas últimas orações, nas quais evito pedir qualquer coisa, me peguei pedindo a Deus que me amasse como amou a Lázaro, retirando a pedra que me oculta: “Jesus pôs-se a chorar. (...) Vede como ele o amava!” João 11, 35-36. Mas se Ele o fizesse, como lidar com o medo de sair de lá de dentro? Lá reina o conhecido, o controlável. Todo o ser humano tende a evitar a frustração! Pensando nisso, me remeti ao Mito da Caverna de Platão (A República, livro VII), escrito entre os anos 385-380 a.C. Prisioneiros que foram acorrentados em uma caverna , só conseguiam ver as sombras que eram refletidas na parede por uma fogueira mantida constantemente acesa. Quando um deles é libertado descobre, com os olhos doloridos pela força claridade, a beleza e grandeza daquilo que estava “fora”. Para Platão, o conhecimento é o que liberta o homem: quanto maior a amplitude do pensamento, ainda que se exija um pouco de “dor", maior a sensação de liberdade.  “Mas quem anda de noite tropeça, porque lhe falta a luz.” João 9, 10. A escuridão que acomoda, limita! “Vós sois a luz do mundo.(...) Não se acende uma luz para colocá-la debaixo do alqueire” São Mateus 5,14-15.
Ali, no meio da digestão, me senti profundamente amada: o poder de libertar meus sonhos me foi dado gratuitamente! Óbvio para a razão que nem sempre rege o coração. Percebo que o Verbo feito carne, feito homem, que nos alimenta de Sua Palavra, a todo o momento nos convida a experimentar o sabor incomparável da liberdade. "Conhereis a verdade e a verdade vos libertará" João 8, 32. E, como escreve sabiamente Pe Fábio, “mais vale uma verdade amarga que tenha o poder de nos fazer crescer, do que a mentira adocicada que nos mantenha acorrentados no cativeiro da ignorância” (Quem me roubou de mim?, 2008). 
Ainda que em minha boca os sabores insistam em se confundir, por fim, tive o apetite renovado.

quarta-feira, 14 de março de 2012

De volta



Caixa escondida pela poeira. Quando a reencontrei, nem lembrava o que lá tinha. Ao abri-la, um espelho. A quanto tempo não me via!