"Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."
Clarice Lispector
Passaram a noite fora e voltaram antes de amanhecer.
Assoviaram novamente e, depois de um tempo ouviram a resposta do outro lado do
muro garantindo a segurança deles: outro assovio. O primeiro do grupo começou
a subir e ouviu do outro lado: "- Ei! Tá limpo!
Me dá sua mão que eu te puxo!" Fez
isso e voltou com êxito. Um a um atendeu ao chamado da voz que vinha do outro lado. Por fim, chegou a vez do meu professor que, sem saber,
também daria a mão a um 'algoz'. Assim que chegou do outro lado ouviu uma voz grave e
rouca lhe questionando “- Nome?” Branco, mais do que já é, olhou para a direção
da voz e viu um homem alto, com bigode volumoso e ligeiramente enrolado nas
pontas: "- Capitão!" O oficial tinha um
sorriso irônico, até então nunca visto, e após anotar o nome de cada um que
fora resgatado no muro dizia: "- Tá preso!"
Na última viagem que fiz ainda me martelava esta história. Olhando para as corredeiras da cachoeira em que molhava meus pés, expliquei a um amigo onde ficava a nascente. Com muita espontaneidade ele sussurrou: “então é sempre água nova...” Ele, sem saber, me fez entender o tempo. Lutar contra nos faz perder a liberdade de viver. Algumas pessoas se apegam tanto ao que passou que se tornam musgos presos a pessoas, bens, experiências. Vivem de projeções do já se foi. E isto exige delas um enorme esforço: se prender as pedras as impedem de participar de novas paisagens e crescerem!
A propósito, este sentido alquimista também produz frutos: a palavra. Algo tão meu se torna “nosso” quando a porta deste laboratório se abre. Nosso porque, mesmo não querendo, as palavras balançam nossos cílios auditivos. Farão parte de você ainda que inconscientemente. Madre Tereza da Calcutá dizia que “As palavras que não dão luz aumentam a escuridão.” Pensando nisso passei a me atentar aos frutos que eu produzia com minha boca “porque a boca fala daquilo que o coração está cheio.” Luc 6, 45. E “não existe árvore boa que dê frutos ruins, nem árvore ruim que dê frutos bons.” Luc 6, 43.
Quando fui apresentada a um Monet, aos 9 anos na aula de Educação Artística,
me lembro como se fosse hoje: não conseguia piscar. A atividade exigia que o
reproduzíssemos. Travei. Mas como professora?! Não existem estas cores no
estojo! Não há amarelo mais vivo e azul mais delicado! Era lindo demais para
meus rabiscos... Mas foi exatamente ele que deu vida ao meu fascínio pelas
artes. Segundo Rubem Alves “é fascínio que acorda a inteligência”.
Realmente: o que seria de Ludwig van
Beethoven, Candido Portinari, Santos Dumont, Fernando Pessoa e muitos outros sem
o incontrolável fascínio?! Assim
como lindamente exclamou Adélia Prado: “Não quero faca nem queijo. Quero é
a fome!”.